quarta-feira, 30 de maio de 2012

Livres e verdadeiros

                 Deparo-me, nesses dias em que meu ser viu-se envolto em turbilhão de emoções porque me revolvem o passado, comprometem-me com o presente e miram a esperança no futuro, deparo-me com texto jornalístico de Albert Camus, que deveria ter sido publicado em 25 de novembro de 1939, no jornal “Le Soir Republicain”, mas proibido foi.

              Destaco frase tão lúcida, justamente sobre a lucidez:

“A lucidez supõe a resistência às tentações do ódio e ao culto da fatalidade.”

              Assim o é, efetivamente.

              A mulher e o homem, bloqueados em si mesmos, cultivam, cotidianamente, a certeza da infalibilidade pessoal no que pensam, e fazem, por isso que não toleram a divergência, e a suprimem. Expressam, ancorados naquela certeza da infalibilidade pessoal, o “culto da fatalidade”, ou seja, o que pensam, e fazem, é inapelavelmente certo, portanto acima de contestações, inútil o diálogo.

              A quem assim é, e como tal age, Albert Camus propõe a lucidez: “resistir às tentações do ódio e ao culto da fatalidade”.

O vento sopra onde quer e ouves a sua voz, mas não sabes de onde vem, nem para onde vai.”

              Eis-me outro ensinamento tão valioso.

              Tão valioso porque me mostra que não somos, porque pessoa o somos, seres manipuladores, ou manipulados; seres aferidos exclusivamente por critérios economicistas, ou tecnológicos.

              Somos, isso sim, pessoas livres e verdadeiras porque a traçar a própria identidade, na própria história, não só pessoal, mas comunitária, porque tanto o eu como o nós não subsistem isolados em si mesmos, mas vida há quando o eu no nós existe e o nós no eu habita.

              Por que tanto resistir à proposta do encontro pessoal e comunitário?

              Adverte Albert Camus:

“Mas a verdade e a liberdade são senhoras exigentes, pois elas têm poucos amantes.”
( grifei ).

              Todavia, aponta o caminho:

“É preciso, pois, tentar um método ainda completamente novo, que seria a justiça e a generosidade. Mas estas só se manifestam em corações já livres e em espíritos já clarividentes.”
( grifei ).

              A propósito, vento, na transcrição que antes fiz, significa espírito, e a transcrição, que é do evangelista João, assim se completa como, digo eu, completa-se toda a mulher e todo o homem, livre e verdadeira/o, que se supera a si mesma/o:

“O vento sopra onde quer e ouves a sua voz, mas não sabes de onde vem, nem para onde vai. Assim é também todo aquele que nasceu do Espírito.”
( Jo. 3,8 ).





 

             

             

              

 

                    

sábado, 5 de maio de 2012

Estado laico

                                             
            Não é de hoje, e com persistência, as grandes empresas jornalísticas de nosso País, sempre que atingem amplo espaço público questões pertinentes à defesa da vida, ou à reflexão sobre a família, vociferam, dogmáticas, em defesa do que chamam: o Estado laico

            Querem estabelecer que a República laica não tolera o tratamento de assuntos religiosos, confinados, então, à consciência individual de cada uma das pessoas, e inaceitáveis à difusão pública.

            Isso nada tem a ver com República laica. Conduz-nos a gritante erro essa imposição do pensar, “politicamente correto”, a que nos submete o stablishment midiático.

            O consagrado Professor de Direito Constitucional José Gomes Canotilho, em sua obra Direito Constitucional – 4ª edição – a partir do estudo dos parâmetros republicanos da Constituição portuguesa de 1911, que encerrou o sistema monárquico, é correto no ensinar que:


2. República laica
Se no tocante à estrutura organizatória da República a Constituição de 1911 não fez senão recolher as idéias do liberalismo radical (e nem todas), quanto a outros domínios tentou plasmar positivamente, em alguns artigos, o seu programa político. Um dos pontos desse programa era a defesa de república laica e democrática. O laicismo, produto ainda de uma visão individualista e racionalista, desdobrava-se em vários postulados republicanos: separação do Estado e da Igreja, igualdade de cultos, liberdade de culto, laicização do ensino, manutenção da legislação referente à extinção das ordens religiosas (cfr. art. 3º, nºs 4 a 12). O programa republicano era um programa racional e progressista: no fundo, tratava-se de consagrar constitucionalmente uma espécie de “pluralismo denominacional”, ou seja, a presença na comunidade, com iguais direitos formais de um número indefinido de colectividades religiosas, não estando nenhuma delas tituladas para desfrutar de um apoio estadual  positivo.”  (obra citada – pg. 247/8, grifei)


            Portanto, Estado laico não é Estado ateu. Não é Estado que proíba sejam abordados temas religiosos no cotidiano das pessoas que nele vivem.

            O Estado laico, justo porque democrático e plural, é o que garante a convivência pacífica e respeitosa dos que professam os mais variados credos, inclusive os que credo não tem.

            O Estado laico, insisto, respeita as convicções religiosas e sua livre expressão.

            O mesmo emérito Professor José Gomes Canotilho, já agora analisando  o tema à luz dos preceitos da Constituição portuguesa de 1976, demonstra como o texto moderno enfatiza a ampla liberdade de manifestação religiosa. De se ler:


2.2. A deslocação constitucional da “República laica

1.      A “laicidade da República”, a “República laica”, é também uma das noções ligadas à tradição republicana. Para além dos “momentos emocionais” que o laicismo republicano transporta, pode dizer-se que ele assenta principalmente em três princípios: secularização do poder político, neutralidade do Estado perante as Igrejas, liberdade de consciência, religião e culto. Todavia, a Constituição de 1976, embora herdando alguns dos princípios republicanos de 1910 (cfr. supra, Parte II, Cap. 3, E, I), não adjectivou a República Portuguesa como “República laica” e deslocou os problemas fundamentais do “laicismo” para o âmbito dos direitos fundamentais. Para além de evitar a reposição da “questão do clericalismo”, a Constituição considerou que, verdadeiramente, o que estava em causa eram problemas relativos a direitos, liberdades e garantias: liberdade de consciência, de religião e de culto, proibição de discriminação por motivos de convicções ou práticas religiosas, liberdade de organização e existência das igrejas e comunidades religiosas, liberdade de ensino da religião e o princípio da igualdade perante o Estado de todas as religiões (cfr. art. 41º).” (obra citada – pg. 410/411, grifei)
            Nossa Constituição partilha dessa mesma diretriz, visto que, expressamente, no inciso VI, do artigo 5º, afirma que
      
      “é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias

            O inciso VII também assegura “a prestação de assistência religiosa nas entidades civis e militares de internação coletiva”, e o inciso VIII não permite, seja privada, qualquer pessoa, de direitos “por motivo de crença religiosa”.

            Todo esse quadro normativo – é óbvio – não enclausura religiosos, e não religiosos, no espaço único de sua privacidade.

            Religiosos, e não religiosos, com as respectivas crenças, ou sem qualquer crença, têm o amplo direito de expor essas suas variadas concepções de viver na cotidiana formação da democrática sociedade. Democrática porque acolhe, incentiva e resguarda a pluralidade dos posicionamentos, e democrática, também, porque compreende ser infindável a interação humana, enquanto vida houver.

           Eis preciosos ensinamentos do padre Mario de França Miranda, como expostos no seu livro: “Igreja e Sociedade”:
“Hoje já se reconhece que as religiões têm algo a oferecer à sociedade civil. São elas que denunciam a marginalização a que são condenados os mais pobres, bem como as injustiças de políticas econômicas. São elas que oferecem uma esperança que sustenta e mobiliza os mais fracos. São elas que, livres de um dogmatismo doutrinário e impositivo, oferecem motivações e intuições substantivas ( e não apenas funcionais ) para as questões sujeitas ao debate público. São elas que, numa sociedade neoliberal e prisioneira de um racionalidade funcional em busca de resultados. Desmascaram a frieza burocrática e tecnocrática apontando os efeitos devastadores de certas decisões. São elas que, para além das macrossoluções milagrosas, apontam para a responsabilidade de cada um e para a imprescindível rejeição de um individualismo cômodo,sem as quais a ética na vida pública ou o problema ecológico não serão solucionados. Aqui a sabedoria religiosa talvez possa ser mais eficaz do que muitos discursos dos tecnocratas.
( pg. 139-40, grifos do autor e meu ).

          E, em síntese, correta, prossegue Mario de França Miranda:
“Porque a sociedade civil pode se tornar presa de ideologias totalitárias, prisioneira da lógica de resultados, ou do sistema econômico dominante, ela necessita de uma instância que a transcenda e a questione, que a desestabilize beneficamente e que a faça progredir.”
( pg. 141, grifos do autor e meu ).

          Assuntos de tamanha relevância pedem tratamento cuidadoso e responsável, pena comprometer-se a importante missão não só de informar, mas de formar a opinião pública.