domingo, 16 de fevereiro de 2014

"Eles têm uma pertença e não devemos isolá-los"


“Sentei ao lado dele para bater papo, estava morrendo de saudades – recorda Isabell -. Agora penso que, talvez por viver um inferno na própria casa, o Coutinho procurasse a história de outras pessoas, sofridas ou não, para conseguir lidar com os problemas, para aliviar a dor que sentia dentro do coração.”
São palavras de Isabell Erdmann (Revista O Globo – 9/2/2014 – pag. 34, na matéria: “Retrato falado por quem foi ouvido”), alemã, radicada no Rio de Janeiro, sobre seu amigo, o cineasta Eduardo Coutinho, assassinado pelo próprio filho.
Cinegrafista, documentando manifestação pública, sobretudo de jovens, é atingido letalmente por artefato de ataque posto em sua direção.
Pessoas jovens assumem atos gravíssimos.
Recordo-me das palavras do Papa Francisco, ditas aos jornalistas, no vôo de vinda ao Brasil para a Jornada Mundial da Juventude:
“Esta primeira viagem tem em vista encontrar os jovens, mas não isolados da sua vida; eu quereria encontrá-los precisamente no tecido social, em sociedade. Porque, quando isolamos os jovens, praticamos uma injustiça: despojamo-los da sua pertença. Os jovens têm uma pertença: pertença a uma família, a uma pátria, a uma cultura, a uma fé... Eles têm uma pertença e não devemos isolá-los! Sobretudo não devemos isolá-los inteiramente da sociedade! Eles são verdadeiramente o futuro de um povo!” (leia-se: Papa Francisco: mensagens e homilias – JMJ Rio 2013 – pag. 9).
Os tempos atuais trazem a marca do isolamento, da solidão.
Os dedos nervosos, incessantemente digitando, comprometem o convívio. Mães e pais ocupados demais, tão preocupados e ocupados que já não se sentam mais à mesa, com seus filhos, e confraternizam, educam; não mais vivenciam a pertença comum à família. Todos, centrados em si, todavia esvaziam-se no consumo digital e televisivo.
O que nos impede de, sem repudiar as características do instrumental tecnológico, reconhecer o caráter unicamente instrumental da tecnologia e, assim, abrirmos espaços ao bom-dia afetuoso; ao contar estórias e deixar que a fantasia nos surpreenda, alegremente; aos passeios, quando juntos aprendemos uns com os outros a conhecer a nós mesmos e ao que nos rodeia; ao boa-noite que, encerrando o dia de trabalho, de estudo, ou o dia de só ser cuidado, tão próprio dos bebês, em todos da família – a mãe, o pai, a filha, o filho – faça acontecer o sentimento vivo de união, ou seja, de pertença porque pertencer é unir-se para ser: o que nos impede?
Retorno ao Papa Francisco a propósito da reflexão sobre o segundo evento: a morte do cinegrafista Santiago Andrade.
“Porém, a pátria é o patrimônio dos pais, o que recebemos daqueles que a fundaram. São os valores que nos entregaram em custódia, mas não para que os guardemos em uma lata de conserva, e sim para que, com o desafio do presente, os façamos crescer e os lancemos à utopia do futuro. Se perdermos a pátria, não a recuperaremos: esse é nosso patrimônio.”( leia-se: Sobre o Céu e a Terra – Jorge Bergoglio e Abraham Skorka – pag. 118 ).
Aí está: nosso Brasil é nosso porque de nossos ancestrais o recebemos em valores fundantes, que não se cristalizam, mas impulsionados pelo suceder das gerações, cresçam na perspectiva concreta da superação e mudança do que precisa ser superado e mudado.
Por tal razão, manifestações públicas são necessárias, alimentam a Democracia.
Manifestações públicas hão de expressar, concretamente, por vozes, faixas e cantos o que se quer mudar.
Manifestações públicas são protagonizadas: os que, livre e conscientemente, optem por nelas participarem, afirmem sua identidade, rostos a descoberto, cidadania ativa presente.
Membros do Ministério Público e advogados, guardiães da Democracia, devem fazer-se presentes às manifestações públicas e os serviços de segurança do Estado devem acompanhá-las, não predispostos a reprimi-las, mas para que não sejam elas desvirtuadas de seus propósitos, o que supõe o equilíbrio e a capacitação profissional desses servidores.
Manifestações públicas exigem que as lideranças políticas respondam de maneira pronta, objetiva e clara, sem subterfúgios ou manobras protelatórias, aos pleitos apresentados. De todo útil e impostergável que a liderança maior de nosso País, a Presidência da República, de imediato tivesse convocado a radiodifusão e a televisão, posicionando-se.
Para encerrar, valho-me de ensinamento do Papa Francisco, que atinge o coração de tantas e tantos, crentes ou não, simplesmente porque é, com atitudes firmes e serenas, o que diz:
“Para completar esta reflexão, além do humanismo integral, que respeite a cultura original, e da responsabilidade solidária, considero fundamental, para enfrentar o presente, o diálogo construtivo. Entre a indiferença egoísta e o protesto violento, há uma opção sempre possível: o diálogo. O diálogo entre as gerações, o diálogo no povo – porque todos somos povo -, a capacidade de dar e receber, permanecendo abertos à verdade. Um país cresce quando dialogam, de modo construtivo, as suas diversas riquezas culturais: a cultura popular, a cultura universitária, a cultura juvenil, a cultura artística, e a cultura tecnológica, a cultura econômica e a cultura da família, e a cultura da mídia. Quando dialogam... É impossível imaginar um futuro para a sociedade sem uma vigorosa contribuição das energias morais numa democracia que permaneça fechada na pura lógica ou no mero equilíbrio de representação de interesses constituídos.” (leia-se: Papa Francisco: mensagens e homilias – JMJ Rio 2013 – pag. 56-57 ).
       


 

    

quinta-feira, 6 de fevereiro de 2014

TRÁFICO HUMANO

                                                  
          A Conferência Nacional dos Bispos do Brasil – CNBB – propõe-nos o  tema “Fraternidade e Tráfico Humano” ao ensejo da Campanha da Fraternidade para este ano de 2014.
          Diz o Papa Francisco: “O tráfico de pessoas é uma atividade ignóbil, uma vergonha para as nossas sociedades que se dizem civilizadas.” (Texto-Base da Campanha nº 7 – pg. 11 ).
          Certamente assim o é porque o tráfico humano dilacera a dignidade da pessoa.
          Instrumentalizada, faz-se em objeto da ganância da atividade econômica erigida em objetivo supremo da razão de viver, e crianças são lançadas em carvoarias a trabalhar por forma inclemente; jovens mutilam-se nos canaviais ao corte da cana, ou padecem sob condições degradantes de trabalho, reduzidos que estão à condição análoga à de escravos; famílias inteiras amontoam-se em cortiços, que são as próprias oficinas do trabalho manual de costura e tecelagem a que se submetem.
          Diz bem o Texto-Base da Campanha, avivando-nos os ensinamentos das Cartas Encíclicas “Sollicitudo Rei Socialis” e “Centesimus Annus”, ambas do Papa João Paulo II:
          “O mundo contemporâneo vive sob o domínio da injustiça e de um sistema cimentado nas estruturas de pecado. Tais estruturas estão ainda mais fortalecidas, agudizando a dramática situação dos mais pobres.” (Texto-Base: nº 158 – pg. 56).
          Como permanecer, quem quer que seja, insensível a essa realidade?
          Presente em mim, aqui e agora, a eloquente afirmação de S. Paulo, dirigida aos gálatas, na ocasião, e a todos nós, para sempre: “É para a liberdade que Cristo nos libertou.”
          Com efeito, a liberdade não é, como tanto se apregoa nos dias em curso, a absolutização da autonomia do eu, alimentando-se de encontros casuais, fortuitos, ou ditados pelo pragmatismo interesseiro; não é o eu centrado em si mesmo, medindo o outro na frieza da relação custo-benefício a que subjaz a fria pergunta: o quanto eu ganho com você?
          Somos livres para que, libertos de nossas egoísticas amarras,  nos entreguemos ao outro, que não está fora de nós, ou nos é alheio, mas que pelo amor-doação faz-se em nosso “outro eu”; e, por tal maneira de ser, com o outro nos envolvemos, realmente, em verdade e justiça. Ou como está muito bem posto no Texto-Base:
          “138. Jesus ensina que a compaixão implica em sofrer a dor do outro, com o outro... Deus, em Jesus, se expõe à dor das criaturas, se deixa afetar.” ( pg. 51 ).
          Por óbvio, não se está, aqui, a fazer o apanágio do sofrimento. Se é certo que o sofrimento é inescapável da condição humana, é igualmente certo que o ser livre supera esse acontecimento próprio da condição humana, tornando-o, como mesmo disse, mero acontecimento, porque a vivência evangélica da liberdade ultrapassa os limites da condição humana.
          Nesse sentido, compreendo as palavras tão verdadeiras do Papa Francisco, ditas no dia 8 de julho do ano passado, em Lampedusa, local de tantas mortes, por afogamento, de desesperados emigrantes africanos, manipulados pelos “senhores” do tráfico humano:
          “Somos uma sociedade que esqueceu a experiência de chorar, de padecer com; a globalização da indiferença tirou-nos a capacidade de chorar.” ( Texto-Base – pg. 102).
          E definitivas, para mim, são também, no mesmo contexto, essas expressões do Papa Francisco:
          “... perdemos o sentido da responsabilidade fraterna; caímos na atitude hipócrita do sacerdote e do levita de que falava Jesus na parábola do Bom Samaritano: ao vermos o irmão quase morto na beira da estrada, talvez pensemos “coitado” e prosseguimos o nosso caminho, não é dever nosso; e isto basta para nos tranqüilizarmos, para sentirmos a consciência em ordem. A cultura do bem-estar, que nos leva a pensar em nós mesmos, torna-nos insensíveis aos gritos dos outros, faz-nos viver como se fôssemos bolas de sabão: estas são bonitas, mas não são nada, são pura ilusão do fútil, do provisório. Esta cultura do bem-star leva à indiferença a respeito dos outros; antes, leva à globalização da indiferença. Neste mundo da globalização, caímos na globalização da indiferença. Habituamo-nos ao sofrimento do outro, não nos diz respeito, não nos interessa, não é responsabilidade nossa.” ( Texto-Base – pg. 103/104 ).
          Possamos todos com atos concretos, responsáveis e firmes, no espaço pessoal, familiar, profissional e comunitário não deixar que a Campanha da Fraternidade seja mero assunto de conversa, ou de teóricas digressões, mas nos impulsione em motivação bastante e eficaz para a ação livre.